Cozido: um prato ancestral com sabor apurado em fogo lento
Bem disse o historiador e filósofo grego Plutarco: “nós não nos sentamos à mesa para comer, mas para comer junto”. Os cozidos casam perfeitamente com esse caráter coletivo da refeição. São fartos, saborosos, com um gostinho de aconchego. Não é a toa que acompanham a humanidade desde os primórdios.
A receita é simples e bem democrática, cada cultura tem a sua. Consiste basicamente em reunir na mesma panela diversos alimentos, como legumes, cereais, carnes, ervas, o que for mais comum na região e estiver mais disponível. O segredo é deixar cozinhar longamente, com calma, em fogo lento. Para dar tempo de a alquimia acontecer. Para que o gosto de cada ingrediente dê sua contribuição à explosão de sabores do resultado final.
Toda a generosidade desse preparo se apresenta mundo afora com diferentes nomes. São pratos inigualáveis em sabor, condimentados com toda uma cultura local. Que tal conhecer mais sobre alguns deles? Vamos lá!
Um dos pratos portugueses mais tradicionais, a receita básica desse cozido reúne carne de vaca, porco e frango, chouriço de carne e de sangue, farinheira e morcela, couve portuguesa e couve lombarda, cenoura, batata e nabo.
Essa receita foi aprimorada ao longo dos séculos. Nasceu em tempos de comida escassa. Então, para saciar a fome de muitos, juntava-se na panela as sobras de alimentos disponíveis e cozinhava-se longamente até apurar a refeição numa consistência que fornecesse energia e mantivesse os convivas aquecidos em dias frios.
Ao longo do tempo, o prato subiu de patamar. No livro Arte de cozinha, de 1680, o cozinheiro da Casa Real de Portugal, Domingos Rodrigues, exalta esse cozido como um prato riquíssimo. Mas Rodrigues ainda não se refere a ele como cozido à portuguesa, e sim como “olha podrida”, termo em português para o prato espanhol “olla podrida”.
Prato típico do Piemonte, no Norte da Itália. Trata-se de um cozido misto, que reúne vários cortes de carne de vaca (capa de filé, alcatra, picanha, músculo etc.), língua, frango e embutidos, como cotechino e zampone, cozidos em peças, além de legumes como cenoura, batata, mandioquinha e repolho.
Carnes e vegetais são cozidos separadamente e reunidos no final, num caldo saboroso. Os grandes pedaços são cortados somente na hora de servir. Para acompanhar, molhos variados e saborosíssimos, como o de ervas.
O tradicional prato da região de Burgos, Espanha, é preparado em panela de barro e em longas horas de cozimento. Conta com carnes variadas de gado e porco, vegetais e grãos, geralmente feijão ou grão-de-bico.
Um dos registros mais antigos da receita foi feito por Bartolomeo Scappi, cozinheiro do papa Pio V, no livro Opera dell’arte del cucinare, publicado em 1570.
O nome do prato remete ao utensílio em que é preparado: cazuela é caçarola em espanhol. Esse cozido de carne ou peixe, enriquecido com vegetais e engrossado com batata, arroz, massa ou farinha de milho é típico de alguns países sul-americanos.
No Chile, a carne de vaca é acompanhada de abóbora, cenoura, pimentão vermelho e alho-poró, entre outros legumes, e espessado com farinha de milho. Como condimentos, leva coentro fresco, páprica e orégano, além de sal e pimenta.
Já a versão peruana é feita com carne de cordeiro, enriquecida com os mesmos legumes e condimentos da chilena. Como toque local, inclui também tomate, vinagre e achiote (um tipo de colorau).
Três cidades disputam a paternidade desse prato na França: Carcassonne, Castelnaudary e Toulouse. Para apaziguar a disputa, os franceses adotaram a regrinha da trindade: quando se fala em cassoulet, Castelnaudary é o Pai, Carcassonne é o Filho e Toulouse é o Espírito Santo.
Seja como for, a história que se propaga é de que o prato teria surgido durante a Guerra dos Cem Anos, como ficou conhecida a série de conflitos que se desenrolaram entre 1337 e 1453 entre Inglaterra e França em torno da sucessão do trono francês. Uma das versões dessa lenda diz que, em dado momento, vendo a cidade medieval de Castelnaudary cercada por tropas inglesas, o chefe da guarda ordenou que os habitantes usassem os mantimentos que ainda restavam para fazer um cozido e fortalecer os soldados que tentavam defendê-los. Outra vertente diz que foram as mulheres da cidade que, vendo o lugar assolado pela fome causada pela guerra, tiveram a ideia de multiplicar a comida disponível ao preparar o tal cozido.
A base da receita que ficou para a posteridade é o feijão-branco, ao qual são acrescentados ingredientes como legumes, carnes de porco, pato, ganso, perdiz, cordeiro etc. O nome também remete ao utensílio onde o prato é preparado: deriva de cassole, um pote de barro em formato cônico.
Tão popular que tem até dia certo para entrar no cardápio dos restaurantes Brasil afora. Quarta-feira e sábado ela não falha! Mas você sabe de onde veio essa receita tão onipresente em nosso paladar? Muita gente acredita que ela nasceu nas senzalas, obra dos escravos, que juntavam ao feijão os restos de carne que a Casa Grande não levava para a mesa dos senhores das terras. Os historiadores que já se debruçaram sobre essa questão dizem que não. A dieta dos escravos, na verdade, passava longe da opulência de uma feijoada tal qual a conhecemos hoje. Ela se baseava principalmente em milho, do qual faziam o angu, mandioca, alguns legumes e o feijão, geralmente temperado com sal e gordura. Raramente consumiam carne.
O historiador e antropólogo Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), para quem “a feijoada não constitui um acepipe, mas um cardápio inteiro”, defende que essa é uma influência portuguesa, com certeza, como explica no livro História da alimentação no Brasil (Editora Global). Segundo ele, nosso famoso prato à base de feijão-preto bebe na fonte dos tradicionais cozidos muito comuns no Velho Mundo: “Pela Europa, notadamente latina ou sob sua nobre influência, há um cozido de várias carnes, vaca, porco, carneiro, toucinho, legumes, hortaliças, pato, ganso, batatas, com maior ou menor variedade, fervendo conjuntamente, tornando-se prato tradicional defendido pelo uso popular”. É o caso do bollito italiano, do olla podrida ou puchero espanhol, do cassoulet francês e do cozido português. Todos reunindo na mesma panela inúmeros ingredientes, que são cozidos lentamente até apurar o sabor.
Para Cascudo, “a feijoada simples ou ‘completa’ (sempre incompleta, no julgamento dos entendidos) é o primeiro prato brasileiro em geral” adaptado dessas receitas europeias. Essa versão nacional começou a se popularizar no Brasil a partir do século 19, no Rio de Janeiro. Ela aparece, por exemplo, num anúncio publicado em 1849 no Jornal do Commercio. Com o título de “Feijoada à Brasileira”, a propaganda dizia: “Na casa de pasto junto ao botequim da Fama do Café com Leite, tem-se determinado que haverá em todas as semanas, sendo às terças e quintas-feiras, a bela feijoada, a pedido de muitos fregueses. Na mesma casa continua-se a dar almoços, jantares e ceias para fora, com o maior asseio possível, e todos os dias há variedade na comida. À noite há bom peixe para a ceia”.
O hábito de servir o maravilhoso guisado de feijão-preto com diversos tipos de carne, guarnecido de arroz branco, farofa, couve refogada, entre outros acompanhamentos, em determinados dias da semana teria nascido em hotéis cariocas. Certo é que o repasto não parou de ganhar adeptos até virar essa unanimidade do paladar nacional.
A receita é simples e bem democrática, cada cultura tem a sua. Consiste basicamente em reunir na mesma panela diversos alimentos, como legumes, cereais, carnes, ervas, o que for mais comum na região e estiver mais disponível. O segredo é deixar cozinhar longamente, com calma, em fogo lento. Para dar tempo de a alquimia acontecer. Para que o gosto de cada ingrediente dê sua contribuição à explosão de sabores do resultado final.
Toda a generosidade desse preparo se apresenta mundo afora com diferentes nomes. São pratos inigualáveis em sabor, condimentados com toda uma cultura local. Que tal conhecer mais sobre alguns deles? Vamos lá!
Cozido à portuguesa
Um dos pratos portugueses mais tradicionais, a receita básica desse cozido reúne carne de vaca, porco e frango, chouriço de carne e de sangue, farinheira e morcela, couve portuguesa e couve lombarda, cenoura, batata e nabo.
Essa receita foi aprimorada ao longo dos séculos. Nasceu em tempos de comida escassa. Então, para saciar a fome de muitos, juntava-se na panela as sobras de alimentos disponíveis e cozinhava-se longamente até apurar a refeição numa consistência que fornecesse energia e mantivesse os convivas aquecidos em dias frios.
Ao longo do tempo, o prato subiu de patamar. No livro Arte de cozinha, de 1680, o cozinheiro da Casa Real de Portugal, Domingos Rodrigues, exalta esse cozido como um prato riquíssimo. Mas Rodrigues ainda não se refere a ele como cozido à portuguesa, e sim como “olha podrida”, termo em português para o prato espanhol “olla podrida”.
Bollito misto
Prato típico do Piemonte, no Norte da Itália. Trata-se de um cozido misto, que reúne vários cortes de carne de vaca (capa de filé, alcatra, picanha, músculo etc.), língua, frango e embutidos, como cotechino e zampone, cozidos em peças, além de legumes como cenoura, batata, mandioquinha e repolho.
Carnes e vegetais são cozidos separadamente e reunidos no final, num caldo saboroso. Os grandes pedaços são cortados somente na hora de servir. Para acompanhar, molhos variados e saborosíssimos, como o de ervas.
Olla podrida ou puchero
O tradicional prato da região de Burgos, Espanha, é preparado em panela de barro e em longas horas de cozimento. Conta com carnes variadas de gado e porco, vegetais e grãos, geralmente feijão ou grão-de-bico.
Um dos registros mais antigos da receita foi feito por Bartolomeo Scappi, cozinheiro do papa Pio V, no livro Opera dell’arte del cucinare, publicado em 1570.
Cazuela
O nome do prato remete ao utensílio em que é preparado: cazuela é caçarola em espanhol. Esse cozido de carne ou peixe, enriquecido com vegetais e engrossado com batata, arroz, massa ou farinha de milho é típico de alguns países sul-americanos.
No Chile, a carne de vaca é acompanhada de abóbora, cenoura, pimentão vermelho e alho-poró, entre outros legumes, e espessado com farinha de milho. Como condimentos, leva coentro fresco, páprica e orégano, além de sal e pimenta.
Já a versão peruana é feita com carne de cordeiro, enriquecida com os mesmos legumes e condimentos da chilena. Como toque local, inclui também tomate, vinagre e achiote (um tipo de colorau).
Cassoulet
Três cidades disputam a paternidade desse prato na França: Carcassonne, Castelnaudary e Toulouse. Para apaziguar a disputa, os franceses adotaram a regrinha da trindade: quando se fala em cassoulet, Castelnaudary é o Pai, Carcassonne é o Filho e Toulouse é o Espírito Santo.
Seja como for, a história que se propaga é de que o prato teria surgido durante a Guerra dos Cem Anos, como ficou conhecida a série de conflitos que se desenrolaram entre 1337 e 1453 entre Inglaterra e França em torno da sucessão do trono francês. Uma das versões dessa lenda diz que, em dado momento, vendo a cidade medieval de Castelnaudary cercada por tropas inglesas, o chefe da guarda ordenou que os habitantes usassem os mantimentos que ainda restavam para fazer um cozido e fortalecer os soldados que tentavam defendê-los. Outra vertente diz que foram as mulheres da cidade que, vendo o lugar assolado pela fome causada pela guerra, tiveram a ideia de multiplicar a comida disponível ao preparar o tal cozido.
A base da receita que ficou para a posteridade é o feijão-branco, ao qual são acrescentados ingredientes como legumes, carnes de porco, pato, ganso, perdiz, cordeiro etc. O nome também remete ao utensílio onde o prato é preparado: deriva de cassole, um pote de barro em formato cônico.
Feijoada
Tão popular que tem até dia certo para entrar no cardápio dos restaurantes Brasil afora. Quarta-feira e sábado ela não falha! Mas você sabe de onde veio essa receita tão onipresente em nosso paladar? Muita gente acredita que ela nasceu nas senzalas, obra dos escravos, que juntavam ao feijão os restos de carne que a Casa Grande não levava para a mesa dos senhores das terras. Os historiadores que já se debruçaram sobre essa questão dizem que não. A dieta dos escravos, na verdade, passava longe da opulência de uma feijoada tal qual a conhecemos hoje. Ela se baseava principalmente em milho, do qual faziam o angu, mandioca, alguns legumes e o feijão, geralmente temperado com sal e gordura. Raramente consumiam carne.
O historiador e antropólogo Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), para quem “a feijoada não constitui um acepipe, mas um cardápio inteiro”, defende que essa é uma influência portuguesa, com certeza, como explica no livro História da alimentação no Brasil (Editora Global). Segundo ele, nosso famoso prato à base de feijão-preto bebe na fonte dos tradicionais cozidos muito comuns no Velho Mundo: “Pela Europa, notadamente latina ou sob sua nobre influência, há um cozido de várias carnes, vaca, porco, carneiro, toucinho, legumes, hortaliças, pato, ganso, batatas, com maior ou menor variedade, fervendo conjuntamente, tornando-se prato tradicional defendido pelo uso popular”. É o caso do bollito italiano, do olla podrida ou puchero espanhol, do cassoulet francês e do cozido português. Todos reunindo na mesma panela inúmeros ingredientes, que são cozidos lentamente até apurar o sabor.
Para Cascudo, “a feijoada simples ou ‘completa’ (sempre incompleta, no julgamento dos entendidos) é o primeiro prato brasileiro em geral” adaptado dessas receitas europeias. Essa versão nacional começou a se popularizar no Brasil a partir do século 19, no Rio de Janeiro. Ela aparece, por exemplo, num anúncio publicado em 1849 no Jornal do Commercio. Com o título de “Feijoada à Brasileira”, a propaganda dizia: “Na casa de pasto junto ao botequim da Fama do Café com Leite, tem-se determinado que haverá em todas as semanas, sendo às terças e quintas-feiras, a bela feijoada, a pedido de muitos fregueses. Na mesma casa continua-se a dar almoços, jantares e ceias para fora, com o maior asseio possível, e todos os dias há variedade na comida. À noite há bom peixe para a ceia”.
O hábito de servir o maravilhoso guisado de feijão-preto com diversos tipos de carne, guarnecido de arroz branco, farofa, couve refogada, entre outros acompanhamentos, em determinados dias da semana teria nascido em hotéis cariocas. Certo é que o repasto não parou de ganhar adeptos até virar essa unanimidade do paladar nacional.